sábado, 19 de outubro de 2024

HOJE É DIA DE LIVRO!

Enterre seus mortos

Autora: Ana Paula Maia






“Jesus, porém, lhe respondeu: “Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos”.

Mateus 8, 22

Enquanto lia o livro de Ana Paula Maia, esse trecho da bíblia se repetia incessantemente na minha mente. Ao longo da obra é possível identificar diversos signos que remetem às religiões cristãs, ora de forma cúmplice, ora confrontando seus seguidores.

Edgar Wilson trabalha recolhendo carcaças de animais mortos na estrada e depois levando para serem moídos e transformados em adubo. A autora não nos poupa as cenas grotescas e potencialmente chocantes. É quase possível sentir o cheiro de carne e sangue de forma que não seria de se espantar que alguém ficasse nauseado.

Ao invés de afastar o leitor, contudo, sua escrita parece exercer um fascínio que nos faz prosseguir.

E que bom que prosseguimos.

Em uma ronda de rotina, acaba seguindo urubus e encontrando um corpo humano, de mulher. Começa aqui sua jornada por um mundo que parece saído de uma fantasia nefasta. Juntamente com seu parceiro de ofício, Tomás, um padre, excomungado que oferece extrema unção às vítimas de acidentes nas estradas, Edgar resolve dar um fim digno àquele corpo.

Acompanhando Edgar Wilson carregar o corpo em seu carro, como um cortejo fúnebre quase sem fim, conhecemos personagens que de tão acostumados à morte tornam-se indiferentes a ela. Ele chega a refletir que os animais que ele recolhe, parecem melhor assistidos. E a crueza como os mortos são tratados, dão ao livro um clima de terror gore.

Selton Mello e Danilo Grangheia no filme Enterre Seus Mortos
Foto: Rui Poças Fonte: https://gshow.globo.com


Ainda assim, o personagem principal nos oferece uma dicotomia. Um homem acostumado ao trabalho bruto, braçal; que consequentemente o torna também bruto, mostra respeito e empatia ao se lembrar que aquela casca vazia, um dia foi uma pessoa que muito provavelmente tinha alguém que lhe queria bem.

Quanto à ambientação, o cenário é árido como as pessoas, como em um livro de faroeste. A forma de narrar o passar dos dias, é muito interessante, não tem um marco, uma quebra. Os dias se sucedem dando a impressão de continuidade, os dias são iguais. O tempo parece não existir. Um dos personagens inclusive diz que tanto o mal quanto o bem se ausentaram daquele lugar.

Como se afirmando seu gosto por dicotomias, somos apresentados à Nete, funcionária da mesma empresa de Edgar que, ao saber de sua determinação em destinar os corpos, pede que ele acrescente à sua jornada, a busca por sua prima que está desaparecida. Se ao longo do livro vemos a humanidade reduzida à pedaços de carne em um comércio, Nete subverte isso e finalmente enterra sua morta, como se cumprisse um tabu e quebrasse uma maldição.

Como uma fábula religiosa, o livro termina com uma cena grandiosa, Edgar e seu companheiro de sina se deparam com um rebanho de ovelhas mortas, como um sacrifício de sangue para fertilizar a aridez. Mas as ovelhas foram mortas pela tempestade enquanto seguiam seu pastor.

É muito difícil descrever esse livro em poucas palavras, causa estranheza, é visceral, é sem rumo, mas também é lindo. Ana Paula Maia, cria um mundo e um personagem cativantes e não à toa, ela se utiliza dele em várias de suas obras. Descobri pesquisando que esse é o primeiro livro de uma trilogia que segue em “De cada quinhentos uma alma” e se encerra com “Búfalos selvagens” e eu já coloquei ambos na minha lista de leitura.

Cartaz do filme Enterre Seus Mortos — Foto: Divulgação Fonte: https://gshow.globo.com

Foi anunciado para 7 de novembro a estreia do filme adaptado livro que conta com Selton Melo, Marjorie Estiano e Bety Faria no elenco. Pelas notícias que pesquisei, já vi algumas mudanças, o que é super normal em adaptações de uma mídia para a outra. Ainda assim, quero muito assistir ao longa, espero me apaixonar tanto quanto pelo livro.

E pra não fugir à métrica 4 planetinhas 🌎🌎🌎🌎




2 comentários:

  1. Nossa! Chama atenção uma trama assim. Embora me pareça o tipo de livro para o qual nada nos prepara emocionalmente para o impacto que causa, me deu vontade de para e ler.

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  2. por isso demorei tanto pra ler, achei que não ia aguentar.

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